fiquei uma meia hora congelado. não exagero, foi mesmo meia hora. a olhar para o quadrado de louça que me deste, a falar de botões e corações. e enquanto aquilo lentamente me disse coisas bonitas (meia hora para 20 palavras, é lento, convenhamos!), fiz um rewind de toda a minha vida. como se estivesse a morrer. e vi muita coisa. a minha mãe a chorar no dia do divórcio. o meu irmão a ir para a tropa. eu a chorar porque o meu irmão ia para a tropa, como se ir para a tropa fosse ir para a guerra, ou fosse ir, só ir, uma criança sabe lá. o meu pai, queimado, no hospital. eu sem saber o que era ter queimaduras de 3º grau, isso é grave?, há graus?, tem a ver com a temperatura do fogo?. a notícia de que era tio (ainda hoje não sei ser isso, um gajo disfarça o que pode, lá vou fazendo o que esperam de mim). a minha primeira namorada a sério e eu, no enigma bar. eu, à espera dela há duas horas, nós íamos namorar, eu sei, mas tinha que esperar. e esperei. e depois acabou tudo, mas foi bom, e depois um turbilhão e depois, no meio da confusão de coisas, tu, e pronto. as memórias agora não são antigas. não têm aquele sépia merdoso, que não é um sépia, porque quem cresceu nos anos 80 tem memórias às cores, e com padrões e cores bem saturadas e isso. mas são memórias que encaixam no ontem. e no há uns dias. e essas, essas são todas tuas.
(em risos)
lembras-te de quando vimos o muinellim? lembras-te de quando fomos ao kremlin? e a primeira noite de todas, em rali da baixa, lembras-te? lembras-te de quando ficámos separados pela primeira vez? lembras-te quando apareci de surpresa a primeira vez? e a segunda? e quando tu vieste com ovos moles para mim? lembras-te do presunto e do melão? e das compras no minipreço para o pequeno-almoço? lembras-te quando fomos comprar roupa no shopping, 3 horas inteirinhas em compras? e trouxémos peixes? lembras-te de me dares o quadradinho de louça? os 2? lembras-te das flores que ficaram sozinhas no meu escritório? dias inteiros sem mim? lembras-te das coisas que queremos? e das que não temos?
(ainda em risos)
lembras-te de falarmos sem saber o que ia ser disto?
(sem risos)
e como quem renasce (porque sim, nesses 30 minutos morri), abri os olhos, estranho à luz e ao que me rodeia, porque é muito mais que um quadrado às cores, é uma perspectiva de outro tanto, do bom e do mau, do que me enerva e do que me faz rir. e pensei, o que vai ser disto agora? já é tanto.. o que vai ser mais?
e depois pensei que 30 minutos é muito pouco para me perder em ti.. portanto, anda, e vamos lá fazer memórias que estas já ninguém mas tira. e fazer da meia hora uma tarde.. e desta dois ou três dias. é que posso querer cortar os pulsos e estar irritado com todos, mas pelo menos, no meio desse furacão todo, sei que posso sempre congelar no tempo e ficar assim, ad aeternum, a lembrar-me.
gostava de dizer que estou mais calmo depois de me lembrar destas coisas. mas seria mentira. ainda me apetece partir os dentes de alguém a pontapé. ter uma espécie de orgasmo múltiplo à medida que os ossos estalam, o sangue brota e alguém geme, não sabe se de dor, se de medo de não sentir mais dor.
gostava mais ainda de sair agora e biqueirar alguém. gostava mesmo. mas não me apetece mexer sequer. prefiro ficar aqui, à tua espera.
o teu noivo
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