olhar para trás com os olhos da frente - parte 2

'fui sempre magrinho'.
lembro.me de uma adolescência com dias passados em casa e na escola, com muito tempo queimado em transportes públicos entre um e outro sítio. as viagens eram longas, sempre à mesma hora, sempre com as mesmas pessoas.
lembro.me de algumas delas. de uma delas. um, aliás. nunca falámos, mas sempre que podia, sentava.me à beira dele, até porque ele, sempre que podia, sentava.se à janela com o lugar de corredor vago. imaginava que ele guardava o lugar para mim. muitas vezes pensei que ele ficava mais triste que eu se alguém, que não eu, ocupasse o meu lugar. e gostava de disfarçadamente (espero eu!) memorizar e usufruir de todos os detalhes que me fascinavam naquele um. vou chamá.lo i.. até porque nunca soube o nome dele. ou se soube, não me lembro. i..
lembro.me da mochila miniatura do i., em vermelho vinílico, que ele usava com as duas alças postas nos ombros. era mesmo vermelha. e mesmo miniatura.
lembro.me do anel, um anel grande, com uma grande pedra, vermelha, acho, que lhe assentava como perfeita na mãos grandes, de dedos grandes, limpos, cuidados, que sempre imaginei macios e cuidadosos.
lembro.me dos caracóis escuros e molhados, de gel contextualizado pelo desconhecimento da cera, que vinham muitas vezes ainda com pingos de água nos dias de maior calor.
lembro.me dos óculos com armação de metal. lembro.me da barba feita há 2 dias. lembro.me do quão perfumada a companhia era, mas não me lembro dos aromas. lembro.me da postura, sóbria e correta.
lembro.me de sair sempre uma paragem mais cedo para o ver andar, de mochila vermelha miniatura às costas, com as duas alças postas nos ombros. e pensava: um dia, vamos ter um passado.
lembro.me de ele ser maior e mais velho que eu, e prometer um conforto e segurança que, acho, me atraía muito mais que tudo o que me lembro dele. queria poder ser envolvido por ele e saber que ia ficar tudo bem. e ouvir a voz dele, que imagino grave e doce, dizer.me que estava protegido. que ele aguentaria todas as balas que me fossem atiradas. que seria meu patrício, meu mentor, meu irmão de sangue. e a minha razão de existir. e eu sei que seria possível. até porque era pequeno e inocente e cheio de esperança e imaginação. e magro.
'fui sempre magrinho'.

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