olhar para trás com os olhos da frente - parte 1

'está tudo igual'.
lembro.me de quando tinha 12 anos e ficava à espera do a. para sair. combinávamos uma hora. e 30 minutos antes, ficava eu sentado à janela da sala, às escuras para que não me vissem da rua, à espera de ver o carro dele chegar. cheirava a lavado, a perfumado, a levemente suado de ansiedade. e o a. chegava sempre atrasado. às vezes meia hora. às vezes uma hora inteira. às vezes mais. mas eu esperava. esperei sempre. e pensava sempre que não ia esperar mais, que a vida era injusta porque eu tinha.me portado bem e tinha estado pronto a horas e, sobretudo, tinha querido muito sair com o a.. mas nada disso importava. todas as semanas esperava pelo a., e todas as semanas o a. atrasava-se. e todas as semanas sentia que a vida era injusta.
lembro.me de ter 13 anos e ser tudo igual. lembro.me de ter 14 anos e ser tudo igual. não me lembro quando deixei de sair com o a.. mas enquanto saí, foi sempre tudo igual.
acho que o a. sabia que eu ficava sempre à espera dele. acho que ele sabia e gostava disso. acho que ele não sabia o quanto a espera podia ser insuportável, mas ele gostava de perceber o quanto eu lhe era dedicado, o quanto ele era importante para mim. acho que ele nunca soube que eu ficava à janela, mas acho que sempre desejou que eu por lá estivesse. quando ele chegava, havia sempre qualquer coisa no corpo dele que denunciava saber estar a ser observado. como um ator em frente a uma câmara, ele sabia de onde vinha a luz e para onde tinha que dizer a deixa que ia fazer com que eu ficasse aliviado por ele ter chegado, mesmo que tarde. e fazia isso comigo sempre. e eu sempre o perdoei por chegar atrasado. mesmo sabendo o quanto era injusto esperar tanto por ele. no fim, ficava mesmo era grato por ter compensado essa injustiça no privilégio, na rara oportunidade de estar com ele e sair com ele.
hoje, com 31 anos, pensei que nunca mais estaria à janela à espera de um a. qualquer. um gajo cresce, ganha capacidade de sair sozinho quando os a. não chegam e, ao vê-los atrasados, gritar-lhes 'mereço mais que horas passadas na penumbra em frente a uma janela iluminada pela rua'.
hoje, com 31 anos, penso 'está tudo igual'.
as horas em frente à janela da internet à espera das respostas de todos os a. que conheço. as horas em frente à janela do telemóvel à espera das mensagens de todos os a.. as horas em frente das minhas janelas à espera que o a. chegue e me deixe ser importante para ele.
eu cresci, saí daquela casa, deixei de me preparar para sair com o a., mas apercebo-me agora, aos 31 anos, que toda a minha vida esperei pelos a. que chegam atrasados com uma servidão que me parece sempre dolorosa e injusta.
chego ao dia de hoje e penso 'tenho cada vez mais medo de ficar só. está tudo igual'.

nota prévia:
depois de 'o menino de todos os dias' e 'quase livro de quase textos', avanço agora para o 'olhar para trás com os olhos da frente'. agradeço a todos que queiram contribuir com memórias. sobretudo, agradeço aos a..

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