quase texto 301

acordei numa espécie de posição fetal.
tardei a abrir os olhos, o que lentamente me permitiu saborear a estranheza de não ter o conforto de um líquido amniótico ou a extensão de mim num cordão umbilical. repito na minha memória a impressão chocante da luz. o barulho da rua. o desamparo.
o meu cérebro activou-se automaticamente: decidiu convencer o resto do meu corpo a acreditar que percepcionava um sonho. eu não tinha despertado. a televisão não estava ligada de véspera. o corpo que respirava ao som da publicidade exausta não era na realidade o meu, nem se encontrava entalado em almofadas numa pobre recriação de um amparo desejado desde sempre. e dentro desse sonho optei (eu, cérebro) por continuar preso, quis usufruir da narrativa (eu, olho) e ter histórias para contar (eu, língua) quando acordasse (mas acordasse mesmo!) numa espécie de posição fetal.
e tardar a abrir os olhos de modo a saborear o conforto de variações de mim mesmo a rodearem-me, protectores do meu sono e do meu regresso, numa respiração una, com ritmos e tempos e velocidades e pausas e silêncios de tal forma coordenados que, num sofá de terceiro andar, um olho qualquer apenas vislumbraria uma enorme massa vivente.
um outro choque de luz. um outro ruído de fundo. o amparo

não gosto da palavra voltar. até porque há sítios dos quais nunca se deve sair.

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