quase texto 299

estou só. mas nem por isso deixo de ter pessoas à minha volta. mas elas não me fazem companhia. apenas me lembram o quanto estou só.

seja porque sou diferente. porque não me drogo. não bebo. não fumo. não pratico qualquer acto de índole marcadamente social. e não sendo sociável, não sou ninguém com os outros. para os outros.

seja porque sou intuitivo. e intuitivamente não sinto vontade de estar com os outros. intuitivamente fico no meu canto, no meu espaço isolado.

seja porque sou arrogante. e ninguém é bom suficiente para me manter entretido tempo suficiente para que não queira rapidamente fugir e ficar só.

seja porque vejo o telejornal. e porque nunca matei, roubei, explodi, desenhei, violei, abri uma empresa de sucesso, marquei um golo, não me identifico com as pessoas do mundo.

seja porque sou cobarde. e não tenho coragem de enfrentar os olhos dos outros, as deixas dos outros (como se a vida fosse teatro), as respirações, entoações, declinações, emoções dos outros.

seja porque já tenho companhia. e essa deixa-me pleno, satisfeito, sem vontade de mais, mesmo que ainda haja espaço para me sentir só.

seja porque sou alienado, porque me mordem as orelhas, porque me mordem os braços, porque me mordem os dedos dos pés, porque me mordem. ah, sou alienado porque assim não sinto dor. deixo a dor isolada de todas as coisas que possa eventualmente sentir.

seja porque sou só. e a distância entre o ser e o estar é qualquer coisa como a permanência. e eu permaneço tanto neste estar que o sou.

o que leva um homem de 26 anos a estar só? quando tem escola, trabalho (ou trabalhos), amigos, marido, família, conhecidos, colegas, rivais, inimigos. e estranhos, que completam a existência cheia de gente. mas uma existência isolada.

nenhum homem é uma ilha: aula de religião e moral, 7º ano, escola secundária de Sá de Miranda. existe sempre um istmo. quando muito somos uma península. mas o meu está submerso. existe, mas debaixo de água. mas todas as ilhas têm ligação submersa a um continente. só as ilhas flutuantes não. nem as voadoras. nem as que existem no espaço. as do espaço…. essas estão sós… não, têm a companhia dos asteróides, dos planetas, da poeira cósmica… um conjunto de isolados é sempre um conjunto, têm ligações, têm coisas em comum, deixam de estar isoladas, separadas.

eu sou uma ilha sem capacidade de integração. desenraizada de qualquer placa tectónica. sem ligação a outra ilha, outro continente. atípico. eu sou atípico.

por isso estou só. porque sou atípico. e mais ninguém o é. todos encaixam num tipo qualquer. eu faço-o apenas por aproximação, por tentativa de compreensão. mas não pertenço a nenhum tipo. estou só. ao contrário de tudo o resto, eu estou só. por isso sou atípico. e por ser atípico estou só.

não é que não me sinta à vontade. sinto é que não estou à vontade. sinto o desconforto de não estar à vontade. e agora? que faço? como passo a sentir outra coisa? ou pura e simplesmente a não me sentir? só, claro!

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